ARTIGO ORIGINAL
Modelos de comprometimento fetal

Fetal damage models

Renato Augusto Moreira de Sá 1, 2, 3, Paulo Roberto Nassar de Carvalho 1, Fernanda Campos da Silva 4, Fernando Maia Peixoto Filho 1, 2

2021
Vol. 131 - Nº.02
Pag.95 – 97

RESUMO

Existem diferentes processos fisiopatológicos que podem colocar o feto em risco; assim, a eficácia dos vários testes fetais depende da condição fisiopatológica subjacente. Os processos fisiopatológicos que podem causar morte ou dano fetal são diminuição do fluxo sanguíneo uteroplacentário, diminuição da troca de gases no nível da membrana trofoblástica, processos metabólicos, sepse fetal, anemia fetal, insuficiência cardíaca fetal e acidentes do cordão umbilical. Doenças que levam ao sofrimento fetal crônico fazem-no por caminhos distintos, exigindo como consequência condutas obstétricas diferentes, segundo cada padrão de acometimento do concepto. Cada um desses processos está envolvido em um dos modelos de sofrimento fetal crônico e requer um padrão de vigilância materno-fetal específico para cada condição com o objetivo de evitar a morbimortalidade perinatal.

ABSTRACT

There are different pathophysiological processes that can put the fetus at risk. Hence, the effectiveness of various fetal tests depends on the underlying pathophysiological condition. The pathophysiological processes that can cause fetal death or damage are decreased uteroplacental blood flow, decreased gas exchange at the level of the trophoblastic membrane, metabolic processes, fetal sepsis, fetal anemia, fetal heart failure, and umbilical cord accidents. Diseases that lead to chronic fetal suffering takedifferent paths, requiring, as a consequence, different obstetric behaviors, according to each pattern of involvement of the conceptus. Each of these processes involves one of the chronic fetal distress models and requires a specific maternal-fetal surveillance pattern for each condition in order to avoid perinatal morbidity and mortality.

Keywords

cardiotocography
placental circulation
fetal development
fetal hypoxia
fetal monitoring

Palavras-chave

cardiotocografia
circulação placentária
desenvolvimento fetal
hipóxia fetal
monitorização fetal

INTRODUÇÃO

A definição de sofrimento fetal crônico é motivo de controvérsia na literatura médica. Esse tópico agrega grande número de disfunções fetais que têm em comum alguma forma de alteração da homeostase e do desenvolvimento do concepto. A maioria dessas disfunções não é consequente à asfixia aguda, mas a um processo crônico que lenta e progressivamente provoca distorções no metabolismo fetal. É possível que essas disfunções estejam ligadas a anormalidades da placenta. A função placentária suporta o crescimento e o desenvolvimento fetal e seu comprometimento pode resultar em anormalidades do crescimento fetal e natimortalidade, o que indica que anormalidades placentárias são relevantes no comprometimento do bem-estar fetal1.

Existem diferentes processos fisiopatológicos que podem colocar o feto sob risco; assim, a eficácia dos vários testes que avaliam o bem-estar fetal dependerá da condição patológica subjacente. Há muito pouco, só se suspeitava de sofrimento fetal crônico quando dele resultava a restrição do crescimento fetal. Sabe-se hoje ser este apenas um dos múltiplos aspectos do comprometimento fetal, embora ainda o mais frequente e de mais fácil diagnóstico. Diferentes grupos celulares podem estar submetidos intraútero a condições adversas, resultando em deficiências outras não associadas ao crescimento somático2.

Os processos fisiopatológicos que poderão resultar em graves sequelas ou em óbito fetal podem ser divididos em sete grupos: diminuição do fluxo sanguíneo uteroplacentário, diminuição da troca de gases no nível da membrana trofoblástica, processos metabólicos, sepse fetal, anemia fetal, insuficiência cardíaca fetal e acidentes do cordão umbilical3. A despeito do fato de que alguns desses processos vêm a comprometer o feto de forma aguda, há que se perceber na propedêutica fetal condições de suspeição e de identificação do risco inerente. A grande maioria dos casos de sofrimento crônico do concepto pode ser enquadrada prioritariamente em um dos modelos teóricos de agravo fetal a seguir listados, cada qual com agentes etiológicos, processos fisiopatológicos, respostas fetais e condutas necessariamente distintas. A maioria dos modelos propostos pode não ocorrer de forma isolada, sendo a sua sobreposição fator de maior risco para o dano fetal. Os elos que os unem são a hipoxia, a hipercapnia e a acidemia, substrato bioquímico do comprometimento fetal, que pode resultar em graves sequelas ou em óbito fetal. Aqui os modelos serão considerados separadamente, a saber:

  • modelo obstrutivo;

  • modelo de subperfusão;

  • modelo anêmico fetal;

  • modelo metabólico;

  • modelo infeccioso;

  • modelo cardiovascular fetal;

  • modelo umbilical.

    O Quadro 1 identifica a condição que pode estar associada a cada um desses modelos e o processo fisiopatológico. É nossa proposta que os obstetras possam reconhecer a natureza do risco fetal tendo como base a informação clínica, e assim sejam capazes de estabelecer a propedêutica adequada para cada modelo específico e de estabelecer a conduta assistencial mais adequada.

    Modelos de sofrimento fetal com a sua correspondência ao processo fisiopatológico e às condições materno-fetais associadas.

    Modelo Processo Fisiopatológico Condição Materno-Fetal
    1-Obstrutivo (insuficiência placentária) Diminuição do fluxo sanguíneo uteroplacentário

  • Hipertensão Crônica

  • Pré-eclâmpsia

  • Doenças do colágeno, renais ou vasculares

  • Restrição de crescimento precoce (<32-34 semanas)

  • 2- Subperfusão Redução da troca de gases

  • Gestação pós-termo

  • Restrição de crescimento tardio (>32-34 semanas)

  • 3- Anêmico Fetal Anemia

  • Hemorragia feto-materna crônica

  • Doença hemolítica perinatal

  • Infecção por parvovírus B19

  • 4- Metabólico Alterações endócrino-metabólicas

  • Hiperglicemia fetal

  • Hiperinsulinemia fetal

  • 5- Infeccioso Sepse fetal

  • Rotura prematura de membranas

  • Infecção intra-amniótica

  • Infecção intra-amniótica subclínica, febre materna

  • 6-Cardiovascular Fetal Falência cardíaca fetal

  • Arritmia cardíaca

  • Hidropsia não imune

  • Corioangioma placentário

  • Aneurisma da veia de Galeno

  • 7- Umbilical Acidentes de cordão

  • Gemelar monoamniótico (entrelaçamento dos cordões)

  • Inserção velamentosa de cordão

  • Oligoidramnia

  • Cordão pouco espiralado

  • Etiologia

    Muitas dessas condições que justificam os modelos de sofrimento fetal constituem-se em um largo espectro de síndromes obstétricas que podem ter origem semelhante. As “grandes síndromes obstétricas” estão associadas, no mais das vezes, à placentação profunda defeituosa, que pode corresponder a diferentes graus de remodelação restrita e lesões obstrutivas das artérias espiraladas na zona de junção do miométrio4. O progresso na compreensão dos processos moleculares que ocorrem durante o implante trofoblástico indica que, entre outros fatores constitucionais maternos, o processo de angiogênese endometrial pode ser o alvo para o diagnóstico e o manejo pré-gestacional. Sendo assim, é provável que a caracterização da angiogênese e o desenvolvimento de biomarcadores no desenvolvimento precoce da placenta forneçam marcadores preditivos diagnósticos e esperançosamente não invasivos para identificar os fetos com risco de sofrimento fetal crônico e, por vezes, também o sofrimento fetal agudo5.

    A placentação profunda defeituosa está associada a um espectro de síndromes obstétricas que inclui: pré-eclâmpsia, restrição de crescimento fetal, trabalho de parto prematuro com membranas intactas, rotura prematura das membranas, descolamento prematuro de placenta e aborto espontâneo tardio5.

    Esse conceito pode ser usado para melhorar a caracterização dos distúrbios do leito placentário e suas consequências para o bem-estar fetal. É possível que essa informação seja valiosa ao refinar as ferramentas existentes para a avaliação diagnóstica de risco fetal antes do resultado da gravidez5.

    Em contrapartida, deficiências na dieta materna, distúrbios no metabolismo da glicose e a presença de doenças cardiovasculares atuam sobremaneira na determinação do desenvolvimento e do bem-estar fetal ao induzirem quadro lento e progressivo de privação de oxigênio e nutrientes. Mais recentemente, o diabetes mellitus gestacional (DMG) foi também considerado uma das grandes síndromes obstétricas, pois resulta do ambiente metabólico projetado no feto através da interface placentária. Em outras palavras, placentas de gestações relacionadas ao DMG diferem das demais pelo aumento da proporção placenta/feto e por achados histológicos como necrose fibrinoide das vilosidades, imaturidade das vilosidades, corangiose e alterações isquêmicas. Enquanto o diabetes de início precoce está mais associado a alterações estruturais marcantes da placenta, o DMG está associado a alterações funcionais desse órgão. Essas alterações placentárias causam aumento da distância de difusão intervilosa de vilosidades imaturas e do tamanho da placenta e podem predispor o feto a alterações crônicas e agudas nas trocas gasosas e de nutrientes, o que pode explicar mais um dos modelos de sofrimento fetal crônico6.

    Em linhas gerais, o sofrimento fetal crônico é influenciado, de modo direto, pelo ambiente intrauterino ao qual o feto é submetido. A literatura atual caminha para correlacionar os modelos de sofrimento fetal crônico, em grande parte, às grandes síndromes obstétricas e, por conseguinte, às alterações ao nível placentário. As condições materno-fetais que são a base dos modelos de sofrimento fetal, como por exemplo a ruptura prematura de membranas, a pré-eclâmpsia, a restrição de crescimento fetal, a macrossomia e muitas outras condições com as quais lidamos na prática clínica, não são entidades isoladas, mas síndromes com mais de uma causa4.

  • supported-by

    Fonte de financiamento: nenhuma.

    Conflict of interests

    Conflito de interesses: nada a declarar.

    Affiliation

    1 Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
    2 Perinatal, Rede D’Or - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
    3 Universidade Federal Fluminense - Niterói (RJ), Brasil.
    4 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

    REFERENCES

    1. Bukowski R, Hansen NI, Pinar H, Willinger M, Reddy UM, Parker CB, et al. Altered fetal growth, placental abnormalities, and stillbirth. PLoS One. 2017;12(8):e0182874. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0182874
    2. Bukowski R, Hansen NI, Willinger M, Reddy UM, Parker CB, Pinar H, et al. Fetal growth and risk of still- birth: a population-based case-control study. PLoS Med. 2014;11(4):e1001633. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001633
    3. Kontopoulos E, Vintzileos A. Condition-specific antepartum fetal testing. Am J Obstet and Gynecol. 2004;191(5):1546-51. https://doi.org/10.1016/j.ajog.2004.07.012
    4. Di Renzo GC. The great obstetrical syndromes. J Matern Fetal Neonatal Med. 2009;22(8):633-5. https://doi.org/10.1080/14767050902866804
    5. Brosens I, Pijnenborg R, Vercruysse L, Romero R. The “Great Obstetrical Syndromes” are associated with disorders of deep placentation. Am J Obstet Gynecol. 2011;204(3):193-201. https://doi.org/10.1016/j.ajog.2010.08.009
    6. Gabbay-Benziv R, Baschat AA. Gestational diabetes as one of the “great obstetrical syndromes”--the maternal, placental, and fetal dialog. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2015;29(2):150-5. https://doi.org/10.1016/j.bpobgyn.2014.04.025

    Address for correspondence:


    Autor correspondente: renatosa.uff@gmail.com

    History

    Received: 02/08/2021

    Accepted: 15/11/2021

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